quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Poema 'Índio Nanquim', sob a epígrafe de Cassiano Ricardo

Mas tu, ó teu menino
que fui, onde estarás?
Cassiano Ricardo*

Quem me dera tornar a ser aquele índio nanquim
Marchando soldado com a espada de papel
E nas mãos o mastro da bandeira:
O palito de um frutilly.

Ah, meus quantos anos de idade...
Será que ainda estou guardado
Dentro da aurora perdida fora do tempo?

Será que ainda espreito dentro do olhar
daquele índio menino pesado
de carregar na bochecha pintada
a tarefa de ter (de ser a) esperança?

Estará aquele soldadinho de jornal
tão fora do tempo que poderá,

somente na nudez dos sonhos, me resgatar?

Na cegueira das horas, na insensatez da construção de um novo mundo,
Aquele menino,
Sob um céu repentino, me encontrará?


* O menino desaparecido, de Cassiano Ricardo. Em Antologia Poética, p.164-166, 1964 e em Montanha Russa, 1960.

domingo, 11 de setembro de 2011

Será olhar

Um pássaro amarelo e azul gorjeia em seu ninho e os filhotes tentam imitá-lo. Mas não se pode ouvir o som, apenas acompanhar os movimentos. Do galho da árvore que fica na calçada, já na parte exterior do condomínio, estendem-se alguns ramos de folhas que ao sabor do vento fazem sumir e surgir o raio de sol da manhã. A manhã é verde, entrecortada pelo marrom dos galhos e do ninho e pelo amareloazul do passarinho. Quando surge o raio de sol, cega os olhos um clarão, mas voltam as cores assim que uma breve folha verde da goiabeira resolve tampar o tímido raio solar; e novamente o clarão retorna, e retornam as cores, uma dança fagueira. A manhã não corre: ela é como um respirar calmo de quem está imóvel, numa janela, apenas observando, distante das preocupações cotidianas, das notícias jogadas na poltrona da sala, das vozes vindas da cozinha, do choro vindo do quarto. Era um quadro moldado na janela do décimo andar, da perspectiva de um homem de trinta anos com as mãos cerradas apoiadas no maxilar, o cotovelo apoiado na base da janela, o corpo envergado e o rosto franzido pelo vaivém do raio de sol.

A voz vinda da cozinha estava num limiar de aumento. O homem cerrava os olhos, sentindo a aproximação da voz, incomodando a ternura de sua cena.

- Você não quer ir comprar uma dúzia de ovos pra mim? Pra mim não, pra gente... Quero fazer um bolo hoje.

Um suspiro desfaz toda a composição criada com tanto esforço, o cenário exato para uma apreciação matutina rara, os pássaros em seu ninho dentro da amendoeira, a ausência de nuvens, o silêncio, o sol na posição exata. Um suspiro tremido desfaz tudo como um pintor que borra uma tinta preta em sua tela, como um cineasta que corta da fita um quadro de sua obra prima. Não há, na linguagem humana, maneira de expressar o sentimento da quebra repentina da catarse experimentada naquela eternidade da manhã; uma palavra, uma palavra...

- humrummm.

O rosto ainda virado para o lado de fora se volta rapidamente para a sala agora escura, uma caverna, uma ausência. Parado, olhos abertos, espera que o cenário comece a se formar. Nada de inesperado; a poltrona onde dormem o jornal e o gato, o abajur sem lâmpada, a TV ligada, os pisos de madeira, uma mulher parada olhando a mesma cena, numa desconfortante entrevista, da entrada da cozinha.

Ouve-se da TV um agrupamento de vozes discutindo a banalidade da ação política tendo em vista a candidatura para as próximas eleições de ex-jogadores, músicos falidos, palhaços e dançarinas. Um dos homens defende a validade dessas manifestações, as destacando como uma forma de atuação legítima do povo, uma necessidade contemporânea de querer participar da vida política do país; uma mulher argumenta esperar que todos estes vençam para que fique provada a incapacidade do brasileiro em tomar decisões sérias. O sociólogo analisa o impacto social dessas candidaturas na formação de uma comunidade de eleitores conscientes. O gato levanta-se e vai para baixo da poltrona. O homem sente inveja do gato, olha para a mulher e boceja; e o bocejo acompanha uma tosse rouca e a tosse rouca acompanha uma fungada de nariz. 

- Se está gripado compre um benegripe também, mas vai logo antes que o comércio feche. Domingo você sabe como é.
- Não.

O “não” saíra sem sentido aparente, mas poderia funcionar de múltiplas maneiras naquele contexto. Não se importava com o motivo, esperava que a mulher subentendesse algo: Não, eu não estou gripado; não, eu não vou comprar benegripe; não, eu não vou logo; não, eu não sei como é no domingo. A mulher, ignorando a resposta, pega uma carteira e a joga no colo do homem, que a agarra. Coça a nuca. Boceja e tosse novamente.

Antes de sair, dá uma olhada na criança que dorme no quarto posterior à cozinha. Passa a chave na porta, calça uma sandália e sai. Não ouve a mulher que pede para trazer também um envelope de tang de manga. Ou de maracujá. Nem ouviria de qualquer forma, tossindo. Pega o elevador com o homem do mil e dois. Abana-lhe a cabeça, e ele retribui. É domingo, diz o homem do mil e dois. Entreolham-se e sorriem. Na portaria, oferece um bom dia ao porteiro, que está de costas e não consegue virar-se em tempo suficiente de responder ao cumprimento.

Na rua, caminha. Deixa para trás o supermercado, a farmácia. Vira uma rua, já tendo o sol defronte. Caminha na direção do sol. A rua é longa, de modo que vinte minutos de caminhada se passam. Agora pode respirar um pouco de maresia. A praia se aproxima. Sua tosse continua, mas os pulmões parecem reagir bem à nova atmosfera. Vira à esquerda e senta-se na mureta que separa o calçadão da areia da praia, próximo a um quiosque.

- Um coco.

Bebe o coco observando as sombras dos passantes projetadas na areia da praia. Sobe o olhar para a praia vazia. O sol não espanta o frio do inverno e o vento bate no seu rosto gelado.

Vai aos poucos entrando em sintonia com a natureza. O vento, o frio e o sol se fundem numa só sensação que se entranha ao corpo agora ameno. Continua olhando em direção à areia da praia, um cão, uma criança, uma família. As ondas batem raivosas nas pedras, no fim da faixa de areira, onde subiam alguns jovens para namorar ou observar a paisagem. Dá alguns goles no coco, sente seu corpo gelando por dentro, um prazer que só pode ser sentido com a convergência de todos os elementos presentes naquela cena, inclusive os passarinhos azuis e vermelhos gorjeando de dentro da vegetação que separa o calçadão da praia.

Pensa no mar. Paga o coco sem muito bem saber quanto está dando por ele. Levanta-se caminhando em direção a um ponto vazio da praia. Senta-se na areia gelada, bem próximo ao ponto onde as ondas cessam por falta de força, deixando um rastro de espuma, cacos de conchas e restos de algas verdes.

Sente perder-se o tudo que pesava em suas costas e alma. As cores vão tomando dimensões, o azul e o verde e o dourado, deixando tudo branco. Procura a mais impensável morada onde a visão humana possa repousar. Elimina de si pensamentos, dores, sentimentos e qualquer faculdade física ou mental. Exceto a visão. A visão resiste, buscando o sublime, a pureza de só existir como fim em si própria, por si e para si. Enquadra o olhar para a divisão longínqua do céu com o mar; e alcança o mais longe que pode, ininterruptamente, para fugir de tudo o que é humanamente mensurável.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

O gato de Cheshire (Livro)

Em 2008, depois de reunir alguns dos poemas publicados em meus blogs em um livro. Encontrei na editora multifoco a possibilidade de ver impressa a minha obra, ainda que 'sob demanda', que é como muitos fazem hoje em dia. Assim surgiu O gato de Cheshire, lançado em novembro de 2008 na Casa das Artes de São Gonçalo. Hoje, disponibilizo a edição em pdf da obra. É só fazer o download e ler. 

Tudo aqui

Silencioso leitor (como diz o Luis Capucho),